Teresa Coutinho: Esse vinho de sabor a rolha, bebi-o…

Esse vinho de sabor a rolha, bebi-o todo. Sorvi beijos delirantes na boca daquela garrafa menstruada, fiz amor com aquela que, para mim, era a mais bela e barata das poesias. A fantasia bastava-me. Ah?! Se não fosse o delírio bêbado, qual seria o meu consolo, o meu conforto, o meu abrigo? Maior tortura do que morrer, seria viver, ou pensar na existência, ou recordar o que ela foi. Qualquer um choraria esta infelicidade se vivesse dentro dela? Mas eu não, eu prefiro acalmar a alma com versos tintos. Assim, tudo o que tenho para recordar é deliciosamente esquecido.

Sinto pena das pobres almas bem vestidas, que calçam passos apressados e doidos na direção do metro, das suas casas para o trabalho e do trabalho para as suas casas. Essa multidão que corre e não me repara, nem desdenha, esses são os verdadeiros tristes falidos, as verdadeiras almas mortas. Esses corpos fabricados pelos convencionalismos saturam o ar com a exuberância superficial dos seus perfumes, que não impedem a propagação do real cheiro podre de si mesmos. As suas más caras, imersas em máscaras de maquilhagem, instintivamente recordam-me palhaços, só que estes não fazem rir. Coitados? Dão pena? Debruçados, carregando nas costas todas as obrigações que o quotidiano obriga, amaçados pelo tempo que se vai estreitando cada vez mais, e cada vez mais esses filhos do tempo vão morrendo, suicidando-se passivamente, parecendo felizes nos negócios, com avultada fortuna, casamento consagrado e várias propriedades magníficas. Enfim? Ridículos! Ridícula dormência. Nas montras tudo os atrai, tudo se vende e tudo se compra. Esquecem-se que os vendidos são eles, e que o que gastam não é dinheiro, mas tempo de vida. Fazem daquilo que possuem, o que são, afinal, se é isso que lhes ensinam, como poderia ser de outra forma?

Mas, quem sou eu para iniciar a revolta contra os princípios-modelo da sociedade capitalista? Comprem! Comprem mais! Gastem mais! Sejam ignorantes completos das coisas da vida! Trabalhem, coisifiquem-se suas máquinas-objeto! Morram sufocados pelo ocultamento de vocês mesmos! Sejam infelizes! Para todos os efeitos, sou um mero bêbedo que ninguém vê e ouve? A verdade é esta: está frio e é noite, as ruas estão húmidas da chuva. Onde irei dormir hoje? Penso demasiado? Preciso de vinho.

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